A gente aprende a ler uma vez na vida, ali pelos seis, sete anos, e nunca mais para pra pensar no assunto. É como andar ou respirar: uma vez que o cérebro pega o jeito, a coisa entra no automático. Nos declaramos "alfabetizados" e seguimos em frente, consumindo notícias, posts, e-mails e, com sorte, um livro ou outro.
Eu mesmo vivi décadas nesse piloto automático. Até topar, há uns 15 anos, com um livro de 1940 chamado Como Ler Livros, de Mortimer J. Adler. A pancada foi forte. Descobri que, embora eu soubesse decodificar palavras, eu era, na melhor das hipóteses, um leitor funcional. Saber ler não é o mesmo que dominar a arte da leitura.
Adler me mostrou que existe um abismo entre passar os olhos por um texto e realmente extrair dele entendimento e transformação. E essa talvez seja uma das habilidades mais valiosas e negligenciadas que podemos revisitar na vida adulta.
Revelação 1: Ler não é receber, é construir.
Nossa primeira intuição é pensar na leitura como um ato passivo. O autor escreve (ativo), e nós lemos (passivo). Adler destrói essa ideia com uma analogia perfeita: a leitura se parece com o trabalho do receptor (catcher) num jogo de beisebol. O arremessador (o autor) lança a bola (o livro), e o receptor precisa ser um atleta para agarrá-la. Pegar a bola é uma atividade que exige tanto esforço quanto arremessá-la.
A genialidade aqui é que Adler, muito antes de a neurociência popularizar o conceito, já descrevia a essência da aprendizagem ativa. O conhecimento não é um pacote que se insere na mente; ele precisa ser construído pelo aprendiz. O leitor ativo, que pergunta, rabisca e debate com o texto, está fazendo exatamente isso: construindo seu próprio entendimento.
Revelação 2: A diferença entre um bom livro e um grande livro.
A leitura ativa, que busca entendimento, é o antídoto para a superficialidade. É ela que nos permite separar os livros que apenas nos entretêm daqueles que nos transformam. Lembrei de uma reflexão do escritor Adam Grant que captura essa diferença de forma brilhante:
Bons livros te mergulham em um novo mundo. Grandes livros te apresentam a uma nova visão de mundo.
Bons livros são "page-turners", feitos para serem devorados. Grandes livros são "corner-folders" (de dobrar a pontinha da página), feitos para serem saboreados.
Bons livros te mantêm engajado. Grandes livros te deixam modificado.
É por isso que Adler insiste que, para crescer como leitor, você precisa enfrentar livros que estão acima da sua cabeça. São esses, os grandes livros, que te esticam, te provocam e, no final, te mudam.
Revelação 3: Os quatro andares da leitura.
Para Adler, a leitura tem quatro níveis. O primeiro é o Elementar, o da alfabetização básica. Mas a mágica acontece nos níveis seguintes: Inspeção (a arte de "radiografar" um livro) , Analítico (a leitura profunda, para digerir o livro) e Sintópico (ler vários livros sobre o mesmo tema e criar uma nova síntese).
Essa estrutura, pensada em 1940, antecipa frameworks de aprendizagem como a Taxonomia de Bloom. Adler já entendia que aprender é uma escada que vai do simples (identificar palavras) ao complexo (analisar, avaliar e criar), mostrando uma visão à frente de seu tempo.
Revelação 4: A conversa com o autor (e seu novo parceiro, a IA).
A parte mais libertadora para mim foi a defesa que Adler faz de "escrever no livro". Para ele, a posse real de um livro só vem quando você o torna parte de si, e a melhor forma de fazer isso é riscando, anotando, debatendo nas margens. É um sinal de leitura ativa, um ato de respeito.
Fico imaginando o que ele diria das ferramentas de hoje. O Kindle e o Readwise seriam vistos como extensões poderosas da "conversa com o autor", mas com um alerta: o risco de colecionar destaques passivamente. E aqui entra algo que ele talvez adorasse: a IA como parceira de raciocínio.
E essa ideia de "conversa" hoje ganha uma dimensão que nem Adler poderia sonhar. A tecnologia, quando bem usada, pode ser nossa grande aliada, mas é preciso cuidado. Existe uma diferença fundamental entre usar a Inteligência Artificial para terceirizar o raciocínio e usá-la para amplificá-lo. O primeiro caminho é tentador: pedir um resumo do livro, perguntar "quais as ideias principais?". É rápido, mas é pobre. É o equivalente a pedir para alguém jogar o jogo por você e só te contar o placar no final. Você obtém a informação, mas perde toda a experiência e o entendimento.
O segundo caminho é o que honra o princípio de Adler. É usar a IA não como uma oráculo de respostas prontas, mas como uma parceira de diálogo. Ferramentas como o NotebookLM, por exemplo, permitem que você use suas próprias anotações e o texto do livro como a única fonte de verdade. A IA não vai buscar respostas fora; ela vai trabalhar sobre o seu material. A partir daí, a conversa muda de nível. Em vez de pedir resumos, você pode perguntar:
"Na minha nota da página 30 eu discordei do autor. Em que outras passagens ele reforça o argumento que eu critiquei, para que eu possa entendê-lo melhor?"
"Com base nas minhas anotações sobre os capítulos 2 e 5, quais as três principais tensões ou contradições no pensamento do autor?"
"Crie três perguntas que eu poderia fazer ao autor sobre o conceito X, baseando-se em como ele o descreveu nestas passagens que destaquei."
A IA, nesse caso, não suprime o raciocínio. Ela o aprofunda, forçando um atrito inteligente com as suas próprias ideias.
O mapa da mina: as 4 perguntas.
Adler resume a arte da leitura em quatro perguntas essenciais que você deve fazer a qualquer livro que mereça o seu esforço:
Sobre o que é o livro como um todo?
O que está sendo dito em detalhes, e como?
O livro é verdadeiro, em todo ou em parte?
E daí?
Esse pequeno checklist é um guia para transformar qualquer leitura numa oportunidade de crescimento.
E no fim, a gente descobre que aprender a ler de novo não é só sobre livros. É sobre revisitar tudo aquilo que a gente já "sabe fazer". É sobre se dar conta de que muitas de nossas habilidades estão rodando numa versão antiga, precisando de um update. Se até o aplicativo do banco exige atualização de vez em quando para funcionar melhor, por que cargas d'água a gente não faz o mesmo, de forma intencional, com nosso repertório de vida?